As dores do existir feminino

12/03/2021

As dores do existir feminino








Por Giselle Mathias
Publicado Brasil 247

Há algum tempo tenho buscado entender onde se inicia o processo de violência nos relacionamentos interpessoais amorosos, talvez por ter ficado metade da minha vida em uma relação que minha existência era negada, meus desejos e vontades desconsiderados e eu me silenciava e cedia para viver o que me tinha sido vendido como ideal de vida para uma mulher.

Uma relação em que eu era infantilizada, pois minhas considerações e decisões eram menosprezadas, simplesmente, porque se eu não aceitasse a definição do masculino era punida com longos períodos de silêncio, em que a sensação era de ser invisível para aquele homem a quem eu acreditava que deveria dedicar e doar a minha existência.

Fiquei um bom tempo me questionando em que momento entrei nesse processo e porque permiti e acreditei na possibilidade de um dia ele me enxergar, porque eu acreditava que só existiria a partir do olhar dele, e que sem ele eu não seria nada, apenas uma sombra perambulando no mundo, uma alma penada.

Todo esse processo de descoberta tem sido muito difícil, enxergar a si próprio não é algo muito fácil, os afetos se confundem, as frustrações e dores se acumulam ao nos desconstruirmos enquanto buscamos nossa essência, tentando separar o que nos molda enquanto um padrão, que desde o nascimento é imposto e naturalizado, e aquilo que realmente somos e sentimos.

Não vou aqui dar uma de Dr. Simão Bacamarte, personagem de “O Alienista” de Machado de Assis, e condenar a todos, como se a única a ter razão fosse eu. Mas, quero trazer questões para a reflexão de como talvez estejamos nos destruindo cada vez mais, por não questionarmos esse modelo padronizado cultural que gera as violências, invisibiliza seres humanos e cria dependências, doenças e dores a todos nós.

Hoje entendo que o processo de violência contra a mulher, não só a física, inicia no dia em que nascemos e somos definidas como mulheres por nascermos como uma vagina, a partir desse momento somos na família, na escola, nos livros, nas novelas, nos filmes etc ensinadas, moldadas e formatadas para o silenciamento, para o ceder, para o compreender e aceitar, para que nossos desejos, vontades e decisões sejam colocadas em segundo plano, pois eles não são tão importantes quanto o do irmão, do namorado, do marido e depois o dos filhos.

Somos educadas para priorizar o outro em detrimento de nós, se não fizermos isso, somos culpadas por todos as desgraças e infelicidades do masculino que está a nossa volta, e por isso devemos, inclusive, com muita elegância e sutileza rechaçar o assédio, a grosseria e, talvez até agradar aquele que não desejamos apenas para nos protegermos de algo mais insidioso e violento.

Quando decidi, assim como muitas mulheres, que não viveria mais dentro desse padrão imposto, as primeiras pancadas foram das próprias mulheres que me questionavam e diziam que eu não deveria lutar pela minha existência, pois o que seria de mim sem aquele homem, que não surgiria mais na vida um masculino que pudesse me desejar e amar devido a minha idade, que estaria só e, portanto, desprezada pela sociedade e, profissionalmente seria um difícil recomeço.

Ouvi muito o velho ditado que “ruim com ele, pior sem ele”, como se minha existência dependesse somente dele.

Confesso que a luta tem sido árdua, não é fácil viver, acreditar, tentar mudar e me comportar fora do padrão imposto. Muitas vezes cedo aquilo para o qual fui formatada enquanto mulher, mas percebo que hoje procuro evitar e rechaçar esse padrão, e, simplesmente lembrar que como ser humano existo, tenho vontades, desejos, anseios, dores, medos e uma imensa vontade de potência, que nem tudo o que vivi me retiraram, apesar de ter ficado escondida por muito tempo.

Tenho percebido que as violências nos são instauradas desde o nascimento, e muitas delas permanecem naturalizadas, e assim permanecerão se não falarmos sobre elas.

Percebo que as relações amorosas são formatadas e moldadas para serem doentias, com dominadores e dominados, com pessoas infantilizadas querendo que todas as suas vontades sejam atendidas, com afetos caprichosos em que o outro é apenas o brinquedinho que não se pode ter e, não a pessoa amada, admirada com todos os defeitos e qualidades.

Esse molde cultural e comportamental nos isola, nos anula e impede questionamentos e, consequentemente, a mudança, talvez para algo melhor, mais saudável para todos.

Quem sabe surgirá um novo modelo em que as pessoas não precisem subjugar as outras, que as mulheres não dependam do olhar e valor masculino para existirem, que percebam a sua existência a partir de si mesma, sem precisar afirmar a todos o quanto é desejada como objeto para talvez ser observada por quem lhe interessa, não precisar a todo momento buscar um novo olhar masculino para acreditar que é visível, que não acreditará ser amada só porque o homem não a deixa em paz, que o amor se revela na perseguição, no ciúme, na insistência, no sufocamento da presença constante, mas também não acreditará só nas palavras e nesse novo tipo de relacionamento quase que exclusivamente virtual das redes sociais, sem o toque, sem o olhar, sem o som da voz.

Por tudo isso e, muito mais, hoje não permito mais ser colocada no lugar da disponibilidade sem que o outro também esteja disponível para mim, não me silencio no que me incomoda e me causa algum desconforto, não dependo mais do masculino para ser, não preciso mais que ele me enxergue e com isso me dê a visibilidade para o mundo, não existo mais a partir do outro, mas a partir de mim mesma.

Hoje entendo que meus anseios, minhas opiniões e decisões devem ser consideradas na mesma equivalência do outro, que não deve haver a sobreposição de um sobre o outro, mas a composição, o diálogo e a consideração e respeito sobre o existir humano.


Giselle Mathias é Advogada em Brasília, integra a ABJD/DF e a RENAP – Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares e #partidA/DF






Escolha a ABJD mais próxima de você

TO BA SE PE AL RN CE PI MA AP PA RR AM AC RO MT MS GO PR SC RS SP MG RJ ES DF PB