A violência de gênero deriva das relações hierárquicas de poder entre homens e mulheres na sociedade e não se deve a doenças, problemas mentais ou de caráter. O auge dessa violência é o assassinato intencional e violento de mulheres em situação discriminatória, agravado pelas condições de raça /etnia, sexualidade e classe social.
No Brasil este tipo penal - que é a descrição de um fato ilícito - existe há cinco anos e foi introduzido pela Lei n 13.104/2015, como resultado das demandas feministas que pautaram as poucas transformações sociais e jurídicas observadas no país no campo dos Direitos das Mulheres.
Os números alarmantes de feminicídios no âmbito dos relacionamentos amorosos - o Brasil teve um aumento de 7,3% nos casos de feminicídio em 2019 em comparação com 2018 (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) - popularizou o tipo penal. Porém, a ênfase no espaço doméstico pode dar a entender que a violência de gênero está restrita aos relacionamentos intrafamiliares, o que não é verdade.
A violência baseada no gênero é uma resposta onipresente e, ao mesmo tempo, uma pedagogia que inibe as mulheres de usufruir dos direitos e liberdades em igualdade com os homens: a mulher deve permanecer no seu lugar, qual seja, o mais distante possível da política e espaços de poder. A desobediência pode resultar em violência e na interrupção da trajetória: foi assim com Marielle Franco.
A política foi construída socialmente como um domínio masculino, sob suas próprias regras. Contudo, nos últimos anos, o aumento da presença de mulheres em espaços políticos decisórios - promovido pelas cotas - violou este comando e expôs outras formas de violência contra os corpos femininos.
Desde a execução de Marielle Franco, a deputada estadual do Rio de Janeiro, Renata Souza, provoca o debate público em torno do conceito de feminicídio político. O conceito visibiliza e problematiza o assassinato de lideranças femininas por sua atuação partidária e/ou nos movimentos sociais organizados.
Dar nome jurídico às violências é simbolicamente importante, principalmente em um Estado Democrático de Direito, e pode contribuir para melhorar as práticas investigativas e os mecanismos de justiça, a fim de evitar mortes ou de esclarecer as fatais.
Desvelar essas condições é levantar o véu de uma realidade não nominada e apontar os limites estruturais da democracia brasileira, marcada pela marginalização das mulheres e outros grupos sociais subalternizados.
Porém, o conceito de feminicídio político ainda não tinha fundamentado decisões federais, até o recente julgamento no qual o Superior Tribunal de Justiça (Incidente de deslocamento de competência nº 24 - DF) recusou a transferência da investigação sobre os mandantes do assassinato da vereadora e de seu motorista Anderson Gomes.
O voto do ministro Rogerio Schietti Cruz mencionou expressamente a presença do componente de gênero no assassinato de Marielle Franco e, além disso, destacou o conceito de feminicídio político, evidenciando os ‘marcadores sociais’ - “sua origem, cor de pele, classe social e orientação sexual”, cujas somatórias a tornaram um corpo matável. Essa equação mostra que a violência política de gênero não atinge de modo igual todas as mulheres, podendo até gerar posições vantajosas para aquelas cuja ambição não ultrapasse o projeto pessoal.
É por isto que, neste momento de grave crise das instituições democráticas brasileiras e de aprofundamento do conservadorismo, a contraposição tanto no campo teórico quanto no prático, não pode prescindir da presença das mulheres, nas suas diversidades de raça/etnia, orientação sexual e classe.
Se por um lado é imprescindível dar nome jurídico ao assassinato político de mulheres por razões de gênero, por outro é urgente ocupar-se da política, para transformar de forma massiva as condições da nossa existência e forçar a redistribuição de poder.
Emilleny Lázaro*
É advogada civilista e integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – Núcleo Tocantins.