Racismo Estrutural: Onde fica o Direito?

26/02/2020

Racismo Estrutural: Onde fica o Direito?




“Uma história de vozes torturadas, línguas rompidas, idiomas impostos, discursos impedidos e dos muitos lugares que não podíamos entrar, tampouco permanecer para falar com nossas vozes”.

A provocação trazida é da Introdução de Grada Kilomba, psicanalista, escritora, artista interdisciplinar portuguesa, em sua obra Memórias da Plantação – episódios de racismo cotidiano, e, em curtíssima síntese, podemos asseverar que bem expressa a sólida base do racismo estrutural, processo sistêmico, construído e retroalimentado para conferir privilégios a certos e determinados estratos das gentes, promovendo artificial divisão humana.

É histórica a construção de hierarquias sociais através da instituição de critérios que atribuem distintas ocupações de lugares, espaços de falas e silêncios, sendo certo que os referenciais de raça e de gênero constituem pilares de desigualdades que perpassam séculos, povos, e aqui destacaremos a identidade racial para iniciar debate que se pretende profundo, fraterno e construtivo sobre o racismo estrutural no Brasil, e suas interfaces notadamente com o mundo jurídico.

É fato inconteste que a escravização negra, raiz da formação brasileira, dá o mote para a persistente desigualdade racial que orienta e conduz o conjunto das relações econômicas, sociais, culturais e institucionais do país.

O sistema jurídico tem papel fundamental nessa engrenagem por incidir de forma determinante nas modelagens, desde a estrutura escravista até os dias de hoje, de modo que o Direito figura também como instrumento de preservação das segmentações que afetam brutalmente o maior contingente populacional negro fora das terras ancestrais do Continente Africano.

Ante as bases escravagistas que tiveram a proteção legal até maio de 1888, a reorganização formal do trabalho no Brasil deveria ter contado com uma nova ordem jurídica efetiva, capaz de erguer as pilastras sobre as quais seriam constituídas relações econômicas a partir do trabalho “livre”, eufemismo para a exploração capitalista da força de trabalho e, para tanto, o Brasil teria que ter promovido um amplo leque de políticas de reparação econômica, de promoção da educação, dentre todas as medidas destinadas a prover a digna sustentação das famílias negras, em especial para acolhimento na rede pública de educação, que seguiu privativa de brancos e brancas.

Em um corte cronológico radical, chegamos a 1988, ano que marca a consolidação do rompimento de uma cruel ditadura militar, regime que colocou na clandestinidade as várias entidades e articulações negras, cujos eixos de mobilização expunham o racismo como cerne das desigualdades estruturais do Brasil.

No período, o artista, intelectual e ativista Abdias do Nascimento era pessoa representativa das insurgências negras da época, e Carlos Marighella o nome mais expressivo do campo de resistência.

A ordem constitucional do Estado Democrático de Direito erigido com a Carta Política de 88 trouxe acenos para nossa gente negra, diante da constitucionalização do direito à ancestralidade, com o tombamento cultural de documentos e sítios históricos, e mais, o reconhecimento das terras quilombolas como território coletivo das comunidades detentoras da posse e história negra libertária.

Do mesmo modo, a criminalização do preconceito racial manifesto em racismo está entre os sinais de que a cidadania nacional poderia ser extensiva, para todas e todos. E esta seria a função maior do Estado como gestor democrático da República Federativa do Brasil.

Ledo engano! O decantado princípio republicano segue sendo termo retórico das elites brancas em zigue-zague direita-esquerda. A República brasileira é impenetrável e as histórias individuais, de exceções, reafirmam a consistência do racismo estrutural que cerceia a população negra do acesso à cidadania e, no extremo, promove o genocídio reconhecido pelo Estado brasileiro, por meio de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.

Fica claro que o Estado inconstitucional não é acusação de forças periféricas, mas conclusão de acuradas investigações promovidas pelo Poder Legislativo. Os relatórios das CPIs expõem sem disfarces a necropolítica estatal, que angaria ampla legitimação social fomentada pelas grandes mídias.

Na esfera do Poder Judiciário importa destacar que o fazer cotidiano da magistratura nacional opera rigorosamente em desacordo com as letras da Constituição Federal, por meio de julgamentos seletivos em face das identidades raciais para absolver ou condenar, a menor ou a maior.

O racismo institucional é, assim, elevado à condição de braço forte na mantença da espessa estrutura racialmente desigual que permite ao país praticar políticas vexatórias de concentração de rendas e de violência estatal. É esse cotidiano que segrega, oprime, humilha, vilipendia o homem negro e violenta a mulher negra.

Sim, o distanciamento entre os preceitos consagrados na CF de 1988, em convenções, em tratados e outros ajustes internacionais abrigados pelo ordenamento jurídico brasileiro e a efetividade da atuação cotidiana do Sistema Nacional de Justiça, ancorado no aparato do Sistema de Segurança Pública, desnuda especialmente no âmbito das políticas de segurança e execução do direito penal o olhar único e dirigido para reafirmar modelos segmentados, excludentes e punitivos, com indisfarçado recorte de tom colonialista, de negação da existência individual e coletiva dos corpos negros desalojados da intrínseca humanidade que o racismo ofende, agride!

Aqui, por honestidade histórica, deve ser pontuado que o Supremo Tribunal Federal se notabilizou em julgados significativos, relevantes, em especial no tocante à declarada constitucionalidade da política de ações afirmativas de cotas raciais para ingresso em universidades e concursos públicos do país, como instrumentos indutores de promoção da inclusão racial na busca da igualdade; na garantia de ritos religiosos dos povos de santo, tema da maior importância para o combate à intolerância religiosa que chega a matar praticantes de religiões de matriz africana.

Noutra ponta de suporte à estratificação racial, as relações de trabalho no Brasil ainda ostentam as marcas das múltiplas torturas das senzalas e dos pelourinhos, quer pela indecente desigualdade da remuneração da força de trabalho, quer pela pura e simples barreira imposta ao ingresso de negros e negras em certos nichos. Nesse ponto, a exemplificação se volta à advocacia privada nacional.

O exercício da advocacia é atividade privativa de profissionais regularmente inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil. Por força de dispositivo constitucional, o advogado e a advogada são indispensáveis à administração da justiça.

No entanto, a ausência negra na prática da advocacia e na direção da entidade representativa da categoria dizem muito sobre a institucionalidade branca que rejeita a presença negra, como revelou mapeamento realizado pelo Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades) em parceria com a Aliança Jurídica pela Equidade Racial, formada por escritórios com apoio do próprio Ceert e da FGV (Fundação Getúlio Vargas), demonstrando que a participação de negros e negras nos grandes escritórios de São Paulo não chega sequer a 1%.

A OAB Nacional, por sua vez, sequer identifica racialmente seus inscritos e inscritas, dificultando sobremaneira a formulação de medidas reparadoras e de inclusão.

As considerações aqui tecidas buscam estreitar as trocas com as forças negras da sociedade brasileira e abrir interlocuções com organizações pan-africanas. Esses podem ser passos firmes e decisivos sobre trilhas nunca dantes percorridas por setores sociais hegemônicos, brancos, inovando em experiências aptas a desmantelar muralhas inviabilizadoras da coexistência humana.

Debruçar sobre as disfunções operacionais do entrelaçamento do direito com a funcionalidade do racismo estrutural é tarefa inadiável das forças democráticas comprometidas com a redemocratização do Brasil, que em perspectiva não pode mais se servir do racismo para robustecer as iniquidades incompatíveis com marcos civilizatórios que até o capitalismo comporta.

*Vera Lúcia Santana Araújo, advogada, integrante fundadora da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia), e ativista da Frente de Mulheres Negras do DF e Entorno


Publicado no Brasil de Fato
Edição: Leandro Melito

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