Entre estado de excec¸a~o e estado de carnaval, que vença a liberdade

25/02/2020

Entre estado de excec¸a~o e estado de carnaval, que vença a liberdade










As possi´veis relac¸o~es entre o Direito e a arte, no plano episte^mico, sa~o ha´ muito discutidas pela Teoria do Direito. Ha´ diversos e relevantes autores que se dedicaram ao tema, inclusive apontando que o Direito pode ser visto mais como uma forma de manifestac¸a~o arti´stica reto´rica do que propriamente como uma cie^ncia ou uma atividade puramente racional.

Sem me imiscuir nesse debate, vale observar que, de fato, quando se trata de interpretar o Direito material, o conteu´do das normas juri´dicas, muitas vezes recorremos a` linguagem e a crite´rios originalmente ligados a` este´tica, como as ideias de razoabilidade e de sopesamento, em conseque^ncia da harmonia – este tambe´m um conceito pro´prio da este´tica.

Se o Direito se aproxima da arte em sua linguagem e instrumentos, tem tambe´m seu encontro com o Carnaval, essa festa popular que vocaliza a possibilidade de manifestac¸a~o plena das liberdades e dos desejos humanos, e que se realiza por meio de expresso~es arti´sticas e este´ticas, como a danc¸a e a mu´sica.

Falar do Carnaval do ponto de vista do Direito na~o e´ algo necessariamente novo. Alia´s, essa relac¸a~o foi mais do que bem tratada na obra do grande jurista e professor argentino Luis Alberto Warat e de diversos de seus comentadores. Em A Cie^ncia Juri´dica e seus Dois Maridos, Warat procura estabelecer os para^metros do que seria uma epistemologia carnavalizada do Direito.

A partir da relac¸a~o entre Direito e Literatura, ou de um olhar litera´rio do Direito, o professor constro´i, com muita criatividade, uma reflexa~o liberta´ria do Direito e de seu uso, revoluciona´ria a` e´poca. Um pensamento que se contrapo~e a` tradicional postura vetusta, sisuda, do jurista e a` excessiva formalidade da teoria juri´dica, que, perdida na busca de uma neutralidade inexistente no plano episte^mico, acaba se distanciando demasiadamente da realidade da vida a que o Direito deveria estar absolutamente atrelado. Atento a essa faceta, Warat encontrou uma forma liberta´ria, carnavalizada, de compreender o Direito, constitui´do pelo desejo, pelo amor, por uma visa~o mais solida´ria e generosa de existe^ncia.

Colocada essa importante refere^ncia, quero tratar do feno^meno do Carnaval a partir de outra dimensa~o do Direito e da Teoria do Estado, a que tenho dedicado boa parte dos meus estudos, que e´ o conceito de estado de excec¸a~o.

Como se sabe, o Carnaval e´ uma festa cata´rtica, e na~o uma comemorac¸a~o ordina´ria. Trata-se de uma celebrac¸a~o radicalizada, de uma festividade dedicada a` vive^ncia plena dos prazeres, dos desejos e da extrema liberac¸a~o corporal, em que ha´ uma certa suspensa~o da ordem institucionalizada. A suspensa~o da normalidade e da normatividade nesses quatro dias de festa ocorre para dar vaza~o a uma liberdade mais intensa, a uma vive^ncia extremada da liberdade corporal, da liberdade de agir, de manifestar afetos, pensamentos e emoc¸o~es.

Vale ainda o registro de que essa vive^ncia, em geral, e´ extremamente generosa e inclusiva, pois se busca agregar ou ao menos enxergar em todos a possibilidade de experimentac¸a~o dessa liberdade amplificada. O Carnaval, ale´m de ser uma festa suspensiva da ordem, liberta´ria, e´ tambe´m um evento igualita´rio e da diversidade, pois na~o se da´ de forma a eliminar as diferenc¸as, mas, ao contra´rio, de incorpora´-las.

Todos te^m direito a` festa e a dela participar da forma mais adequada a exercer os pro´prios desejos. Nesse sentido, o Carnaval suspende a ordem e a pro´pria ideia de unidade, pois rompe com a normatividade e com a perspectiva de um comportamento padronizado. O Carnaval e´, em suma, uma espe´cie de permissa~o para que cada um vivencie sua alegria de forma singular e plena.

Na~o podemos deixar que este momento cata´rtico favorec¸a, durante todo o resto do ano, um comportamento apa´tico ante a escravida~o volunta´ria

Por mais contradito´rio que parec¸a – e e´ – e´ justamente o fato de o Carnaval suspender a normalidade que o aproxima da ideia de excec¸a~o. O estado de excec¸a~o ou as medidas autorita´rias de excec¸a~o sa~o tambe´m formas de suspensa~o da normalidade e da normatividade. So´ que ha´ entre esses dois contextos – o do Carnaval e o do autoritarismo do Estado – uma distinc¸a~o absoluta, que os coloca em lados absolutamente opostos.

Isso porque, ao passo que o Carnaval interrompe a ordem para promover a vive^ncia exacerbada da liberdade, as medidas de excec¸a~o o fazem com objetivo completamente oposto. Suspendem a normalidade para se obter uma maior restric¸a~o da liberdade e, muitas vezes, a supressa~o total desse bem absoluto e ate´ mesmo da pro´pria vida humana.

Assim, enquanto o Carnaval representa a liberac¸a~o dos corpos e a da normatividade em favor de uma manifestac¸a~o mais plena do desejo, o Estado de excec¸a~o ou as medidas de excec¸a~o que caracterizam o autoritarismo li´quido dos nossos dias suspendem os direitos para que haja uma soberania bruta sobre os corpos e sobre as liberdades individuais.

Como se ve^, o Carnaval e o estado de excec¸a~o sa~o conceitos antite´ticos, contradito´rios, que na~o convivem no mesmo espac¸o e tempo por uma incompatibilidade total. Pode-se assim dizer, quem sabe, que a forma antino^mica do estado de excec¸a~o e´ o estado de Carnaval.

O Brasil, cujo povo tem forte identificac¸a~o com essa festa, vive hoje uma situac¸a~o de recrudescimento das formas de autoritarismo li´quido e de medidas de excec¸a~o que suspendem os direitos de parcelas da populac¸a~o e de grupos especi´ficos, suprimindo suas liberdades, sua vida civil, seus direitos fundamentais. Entrara´ no Carnaval em um momento bastante agudo de retrocessos e precarizac¸o~es de toda ordem.

Nesse contexto, longe de querer fazer o papel do estraga-prazeres ou de jogar um balde de a´gua fria nos folio~es, vejo que e´ preciso garantir que o Carnaval, de fato, carnavalize. Na~o se pode permitir que essa vive^ncia ta~o rica e potente tenha seus significados e possibilidades transmutados, na quarta-feira de cinzas, em apatia ante a escravida~o volunta´ria imposta pelas formas de autoritarismo li´quido hoje vigentes.

Na~o podemos deixar que esse momento cata´rtico favorec¸a, durante todo o resto do ano, que suportemos um ambiente de vida mais restrito em termos de direitos e do exerci´cio de nossas liberdades, visto que isso e´ a anti´tese do Carnaval.

*Pedro Serrano é advogado, professor de Direito da PUC-SP e membro da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia)

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