Do carro elétrico ao fundamentalismo religioso: retrocessos e submissão aos EUA na Bolívia

12/02/2020

Do carro elétrico ao fundamentalismo religioso: retrocessos e submissão aos EUA na Bolívia







Em outubro de 2019 foi apresentado o E2, primeiro carro elétrico boliviano, fabricado em Llajta, Cochabamba, pela Quantum Automóviles Eléctricos. Trata-se de um pequeno veículo de três lugares, idealizado para o uso urbano, com velocidade máxima de 60 km/h, autonomia de 70 km e preço por volta de US$ 5 mil. 40% dos seus componentes são fabricados na Bolívia e as primeiras 50 unidades já estão à venda. Foi pensado como uma alternativa sustentável do ponto de vista ambiental, em contraponto à poluição causada pelos combustíveis fósseis.

O Salar de Uyuni boliviano faz parte do “triângulo do lítio”, território que também abrange o noroeste da Argentina e o norte do Chile (Atacama), e concentra cerca de 85% das reservas mundiais desse mineral, chamado de “ouro branco”, utilizado na fabricação de baterias de celulares e de carros elétricos. Ao contrário dos argentinos, que apenas exportam o mineral como uma commoditie, sem restrições à exploração pela iniciativa privada, os bolivianos nacionalizaram o controle do lítio e deram início a um projeto nacional de industrialização.

Em 2017 foi criada a Yacimientos de Litio Bolivia (YLB) estatal que, dentre outros planos, firmou um acordo com a empresa alemã ACI Systems para a implantação de uma planta industrial que exportaria baterias de lítio para o mercado europeu. Também foi realizado um acordo com o consórcio chinês TBA-Baocheng, para a construção de mais duas plantas industriais no território boliviano.

Toda essa movimentação no seu “quintal” não passou despercebida pelo Grande irmão do Norte. Os estadunidenses, em meio à guerra comercial com a China, viram seus interesses ameaçados pela parceria sino-boliviana. Vale lembrar que o mercado dos carros elétricos é marcado pela disputa entre as empresas chinesas e a estadunidense Tesla. Segundo Agustina Sánchez:

“É importante mencionar a relevância deste acordo, uma vez que a China é atualmente o maior produtor de veículos elétricos através de sua empresa BYD, que tirou da estadunidense Tesla essa posição. É também o maior consumidor de carbonato de lítio no mundo, assim como dos produtos industriais derivados deste recurso”.

Neste contexto, começaram os ataques ao governo Evo Morales, originados não da branca e rica Santa Cruz, mas sim de Potosí, região pobre e de maioria indígena, onde o chefe do Comitê cívico local, uma espécie de associação formada por grupos de empresários, da qual não participam sindicatos nem pequenos produtores, Marco Pumari, deu início a uma campanha acusando o presidente Evo Morales de “entreguismo” em razão da realização do acordo com a empresa alemã.

O Comitê Cívico de Potosí considerava baixa a porcentagem dos royalties (3%) destinados à região. Essa campanha despertou a identidade regional e uniu a direita e setores da esquerda urbana local contra o governo.

Pressionado, Evo acabou cedendo e desfez o contrato com a ACI Systems. Mas já era tarde. Após vencer as eleições em outubro de 2019, o presidente se viu acuado por uma violenta campanha com fortes componentes de fundamentalismo religioso e racismo, onde símbolos indígenas foram destruídos e apoiadores do governo se tornaram alvos de milicianos armados. Marco Pumari não ficou satisfeito com o resultado de suas reivindicações e, de forma oportunista, se juntou a Luis Fernando Camacho, o “Bolsonaro boliviano” líder do Comitê Cívico de Santa Cruz, exigindo a renúncia do presidente.

Talvez o maior dos absurdos neste episódio foi desqualificar um projeto de desenvolvimento industrial autônomo como entreguista. O acordo alvo da polêmica previa a criação de uma empresa mista controlada pela YPL boliviana, com transferência de tecnologia e exportação de um produto de alto valor comercial para o mercado europeu.

No dia dez de novembro do ano passado, Evo Morales renunciou ao cargo, denunciando um “golpe civil, político e judicial”, perpetrado com a cumplicidade dos Estados Unidos e da OEA. Porém, a polarização do cenário político boliviano ainda está longe do fim. A agremiação do presidente eleito (Movimento para o Socialismo) concordou em participar de novas eleições, e seu candidato, Luis Arce, lidera as pesquisas com 26% das intenções de voto. Será preciso mais um golpe de Estado para que a direita boliviana se consolide no poder? Vamos aguardar. O que está evidente é o retrocesso sofrido por um país que busca utilizar seus recursos naturais de forma soberana, simbolizado pela tecnologia do carro elétrico, e que agora está submetido a um regime onde homens armados se escondem atrás de máscaras e de um discurso religioso tão fanático que nos remete à Idade Média.

*Rafael Molina Vita, mestre em políticas públicas, membro do coletivo estadual de Direitos Humanos do PT/SP e da ABJD. Colaborador da Diálogos do Sul

Escolha a ABJD mais próxima de você

TO BA SE PE AL RN CE PI MA AP PA RR AM AC RO MT MS GO PR SC RS SP MG RJ ES DF PB