45 Anos da Lei de Anistia: Um Passado Que Ainda Assombra o Presente

03/09/2024

45 Anos da Lei de Anistia: Um Passado Que Ainda Assombra o Presente


Por Tereza Mansi
Advogada, militante dos direitos humanos, conselheira suplente no Conselho de Direitos Humanos do Estado de Pernambuco, representando a OAB/PE e membra da Executiva Nacional da ABJD.

A Lei de Anistia, sancionada em 28 de agosto de 1979, durante a presidência de João Batista Figueiredo, o último general a governar o Brasil, completa 45 anos, carregando consigo um legado contraditório e o peso de expectativas frustradas. Promulgada pouco após o término do governo de Emílio Garrastazu Médici, cujo período ficou conhecido como os "anos de chumbo" — os mais severos anos de repressão estatal da ditadura civil-militar-empresarial — a lei n° 6.683 emergiu em um contexto de opressão brutal, em que liberdades haviam sido sufocadas e opositores do regime, perseguidos sem piedade. 

Fruto de uma intensa mobilização social que clamava por justiça, liberdade e o fim das perseguições, a anistia foi vista como um marco decisivo rumo à reconciliação nacional. Esperava-se que fosse um momento de redenção para as vítimas da ditadura e uma oportunidade para restaurar os princípios democráticos no país. No entanto, ao longo das décadas, revelou-se uma promessa apenas parcialmente cumprida. Em vez de realizar o ideal de justiça, a Lei de Anistia tornou-se um símbolo de impunidade. Ao conceder proteção jurídica a torturadores, assassinos e outros responsáveis por crimes graves durante o regime, a legislação falhou em promover uma justiça verdadeira e em confrontar o passado de forma transparente. Assim, o que deveria ter sido um instrumento de reconciliação nacional tornou-se um obstáculo à memória e à verdade, perpetuando a sombra de um período sombrio da história brasileira. 

Para muitos, a lei consolidou um pacto de esquecimento, permitindo que os responsáveis por violações de direitos humanos escapassem das consequências de seus atos. Exemplos emblemáticos dessa impunidade são o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou o temido centro de tortura do Doi-Codi em São Paulo, e o delegado Aparecido Laerte Calandra, conhecido como "Capitão Ubirajara", ambos acusados de praticar atos brutais contra opositores do regime, que apesar das acusações graves que pesavam sobre eles, foram beneficiados pela anistia, o que evidencia o quanto a legislação favoreceu os algozes em detrimento das vítimas. 

Além disso, a exclusão da anistia, de alguns militantes de esquerda, já condenados em última instância, revelou um desequilíbrio profundo na aplicação da lei. Essa seletividade perpetuou a desigualdade e a injustiça, reforçando as contradições de um país que, ao invés de punir os responsáveis por graves violações, preferiu varrer seus crimes para debaixo do tapete da história, deixando uma dívida impagável com as vítimas e com a própria democracia. 

Assim, a promessa de reconciliação e justiça, que deveria ter sido um farol de esperança para o Brasil, transformou-se em uma sombra persistente, reabrindo feridas que nunca cicatrizaram por completo.  

Desde sua promulgação, a Lei da Anistia tem sido alvo de críticas e contestações, especialmente por seu papel na manutenção da impunidade. Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil pela falta de investigação e punição dos crimes cometidos durante a ditadura militar, no caso Gomes Lund e outros ("Guerrilha do Araguaia") versus Brasil, reafirmando que as leis de autoanistia, nos dispositivos que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos, são incompatíveis com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. 

Apesar dessa condenação internacional, o Supremo Tribunal Federal, no mesmo ano, decidiu que a Lei da Anistia não poderia ser alterada para permitir a responsabilização dos agentes da ditadura, uma decisão que contraria a orientação da Corte Interamericana. Essa controvérsia jurídica e moral impulsionou a criação da Comissão Nacional da Verdade, que atuou entre 2011 e 2014. A comissão se dedicou a investigar os crimes cometidos durante o regime autoritário, revelando verdades que permaneceram ocultas por décadas. No entanto, apesar de seu trabalho crucial para o resgate da memória histórica, a comissão não possuía poder judicial para punir os responsáveis, limitando-se a documentar os horrores vividos e a recomendar reparações. 

Esses esforços, embora fundamentais para a construção de uma memória coletiva, evidenciam as limitações do sistema de justiça em enfrentar plenamente o legado de um passado marcado pela repressão e violência. O desafio de romper com a impunidade e promover uma verdadeira reconciliação permanece como uma tarefa inacabada, essencial para a consolidação da democracia e a cura das feridas ainda abertas na sociedade brasileira. 

Esses 45 anos nos convidam a refletir profundamente sobre o verdadeiro significado de anistia e sobre o que ainda precisa ser feito para que o país possa, de fato, enfrentar seu passado de maneira justa e transparente. Romper definitivamente com a impunidade e abraçar uma memória histórica que honre a luta daqueles que foram perseguidos, torturados e silenciados é uma tarefa urgente e inadiável. 

Esse erro histórico perpetuou um sentimento de injustiça que ainda ecoa na sociedade brasileira. Os crimes cometidos pelo Estado contra sua própria população ficaram impunes, e as vítimas, suas famílias e a sociedade como um todo continuam a carregar o peso desse pacto de silêncio. A ausência de responsabilização daqueles que utilizaram o aparato estatal para torturar, assassinar e desaparecer com opositores alimenta uma ferida aberta, impedindo que o Brasil possa avançar como uma nação verdadeiramente democrática e justa. 

Aos 45 anos, a Lei de Anistia permanece como um espelho distorcido de um país que não conseguiu confrontar seu passado de forma plena e honesta. Ela simboliza não apenas uma transição incompleta para a democracia, mas também as feridas ainda expostas de um povo que clama por verdade e justiça. Revisitar essa lei tornou-se um imperativo para que nossa nação aspire um futuro fundamentado em memória, verdade e justiça. Somente através da revisão dessa legislação poderemos, de fato, avançar no processo de cura coletiva e garantir que as atrocidades do passado jamais se repitam.


Este artigo de opinião integra o Observatório Justiça e Democracia (OJD). Conheça a metodologia de submissão de artigos clicando na imagem acima.


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